sábado, 12 de março de 2016

O GRANDE APRISIONADOR (parte I)

"Satan", por Kalmakoff
O psicanalista suíço Carl Gustav Jung, famoso por sua influência na espiritualidade do Sec. XX, afirma (em seu Tipos Psicológicos) que O Diabo a tentar os monges em suas provações ascéticas é nada mais nada menos que o próprio inconsciente dos anacoretas. E com isso ele não quer dizer que Satã é "parte" do inconsciente, e sim que o Inconsciente é ele próprio Satã.

Agora, Satã, o Diabo é uma figura complexa, da qual vale destrinchar um par de fios os quais são de uso para fazer sentido dessa afirmação. Os Cristãos fazem hoje o sincretismo da Serpente (do Jardim) com o anjo acusador do judaísmo, Satã, que por algum nó surreal veio a absorver o título antes reservado a Cristo: Estrela da Manhã. A imagem, certamente tributária de Milton, é a de uma estrela caída ao subterrâneo por sua Luz autocêntrica, e com ela seguiram também vários anjos, preferindo habitar o Caos da matéria desprovida de inteligência à viver sob a condução da Vontade celeste.

E assim o Diabo ganha associação com elemento Terra, uma vez que é o único elemento capaz de "resistir" à divina inteligência - aliás, o papel da Terra é durar! Vemos na carta O Mundo, do Tarot, que o Touro (que simboliza a Terra) é o único dos 4 Animais Viventes desprovido de auréola. Já chifres, e patas de bode O Diabo adquire apenas durante a idade média, durante a lenta e constante perseguição às outras religiões (ditas "pagãs"), no que absorve em seu campo semântico as deidades ferais masculinas, associadas aos cultos de fertilidade da terra.

Em verdade Jung jamais se aventura a proclamar seus "símbolos" e o "psiquismo" realidades espirituais, alegando cuidadosa ignorância sobre a metafísica. Porém, como revela uma curta olhada em sua biografia, a vida de Jung foi repleta de ocasiões mágicas e visões milagrosas, inexplicáveis: vemos que é precisamente da presença do bom e velho Espírito que estamos tratando, ao proclamar o Inconsciente: a descida de algo invisível e transcendente a um mundo de manifestação, onde se atrela aos automatismos (1) da pura reação concatenada (karma).

Repetição e automatismo - é nessa chave que Jung descreve seu conceito de arquétipo: repetição de um fenômeno por milhares de anos, gravando poderosa impressão na psiquê. O Sol nasce e se põe, noite e dia a alternar-se milênios afora. O bio-psiquismo nascente dos seres vivos tinha de emular a natureza em vias de se adaptar (à ponto de perdurar, e estar aqui), e acaba por adotar a dinâmica deste ciclo em sua própria estrutura (um exemplo é o ciclo cicadiano de nosso corpo - o "relógio biológico"). 

Quando posteriormente surgem os aparatos simbólicos, ou seja, a cultura, os blocos básicos de "ritmo" gravados no complexo bio-psíquico se atrelam à linguagem, que então passa a codificar de modo complexo os fluxos (montar corpos e gravá-los com a estrutura simbólica da cultura, montando gente).

A criação da "cultura" faz com que as experiências sedimentem de maneira crescentemente frenética, surgindo a "memória cultural", que se desenvolve ao mesmo tempo em dois níves distintos: ao nível superestrutural persiste em mitos, ritos iniciáticos, histórias e nomes; mas mais importante, abaixo em sua infraestrutura: encontramos camadas sucessivas de energia emocional (libidinal) sedimentada no corpo sob a forma de estases musculares, paralização  sistemática da motilidade, ou seja, do ciclo vital de um dado músculo. À essas rigidificações no corpo, Wilhelm Reich denomina couraça de caráter.

Tarot de Marselha restaurado por Jodorowsky-Camoin

A psiquê nascente do amanhecer da consciência - pristina por não ter ainda criado ainda sérias barreiras entre o Eu e a potência criativa/vital - essa consciência pura habita um mundo onde as bordas do sonho e do dia são difusas. Um estado que possibilita uma imensa força criativa (a força que deu parto às culturas!) - como a mente de uma criança, de um mago ou místico em transe, ou de uma pessoa sob efeito de um enteógeno.

Quando posteriormente a força codificadora da cultura se instala nos corpos das pessoas, surge uma oposição entre o mundo objetivo-abstrato do Ego (o mundo do controle) e do outro lado o mundo relegado, de sentimentos e intuições fugidias, de bordas difusas e paradoxos não-duais. É largamente sabido na antropologia que as tradições por todo o globo o homem foi identificado como o sujeito e centro da cultura, e a mulher como sua margens. De similar forma distribuíram-se (forçosamente) as faculdades psíquicas, restando ao feminino restringir-se às funções marginais e portanto fazendo o contato, a membrana, entre o Dentro codificado e o Fora descodificado. A isso se deve a facilidade com a qual grande parte das mulheres tem em acessar e manejar os mundos invisíveis; por exemplo, para os Egípcios, a deusa Isis era tida como criadora da Magia.

Esse processo finca suas bases ao início do patriarcado, mas é quando surge o Estado - a Civilização, que é fundamentalmente Diferença de Classes - que o controle atinge um plano totalmente outro: os corpos, antes "arados" (à sangue) pela cultura, vem à receber agora a dura carga da domesticação e o flagelo da servilidade; são simbolicamente "castrados" para adequar-se à posição de subjugados aos desígnios das classes nobres (à princípio, classes guerreiras e conquistadores).

E de lá pra cá são milhares de anos, sem dúvida repletos de fugas e de resistências, e em dose ainda maior, brutal repressão. Dos estupros grupais corretivos impostos a mulheres que desviam dos padrões - hábito inclusive em algumas tribos indígenas brasileiras - aos séculos de escravidão e de servidão feudal e imperial - aos massacres coloniais - à perseguição de bruxas (em quase todo canto), aos povos nômades ou diaspóricos - cada ato de opressão sedimentando o poder mais ainda no corpo, gravando memória de dor ossificada. Duradoura, osso pontudo a sangrar os séculos.

Aí no vínculo - na algema! - desse passado que recusa-se a desaparecer, desse passado que se impõe sobre o presente, mora O Diabo. Senhor de todos os liames, Grande Aprisionador. Ele é feito de recusa do Si Mesmo & responde por todo o Caos que isso gera no mundo. A terrível sombra projetada pelo gigante robô do controle. Sua força é a energia sexual e agressiva - a nossa energia, que nos foi e é negada - e a neurose é a cumplicidade com esse status quo. Por isso, o Diabo manda no mundo. 

Jung acredita que cada era e local demanda um distinto processo alquímico em vias de precipitar a individuação (isto é, diferenciação, um ganho da diferença). Na era passada, em vias de seguir a ascensão das sociedades civilizadas (e esta era uma demanda de urgente valor adaptativo, pra todo mundo!), foi preciso lutar contra o Diabo (o feminino reprimido), afirmar o papel da consciência de conceitos e objetos masculinos - versus o mundo crepuscular do sonho e do instinto, e jogar nas regras do controle, polarizando de tal modo a consciência que apenas através de um catastrófico Sacrifício era possível restaurar o equilíbrio entre os opostos. Este processo correu por uma dezena de milhares anos até o limite e agora, em nossa era, o papel é de nos virar para a Sombra e integrar de volta o inconsciente na consciência. (2)

É a isso que a primatóloga feminista Donna Haraway se refere com o termo Chthuluceno: reaver as forças trancadas debaixo da terra, que seja para fazer frente e sentido ao colapso causado pelo titânico aparato de controle desequilibrado que se impõe contra a vida na Terra. Não se trata de "Satanismo" (entronizar a sombra por acima do Ego), e sim de revelar a complementaridade e igual valor de todos os pares de oposição, reavendo-nos da energia condensada sob a forma do feminino reprimido. Uma vez removida da panela de pressão, a sombra revela-se, finalmente, uma gradual (mas sempre extática) fusão e com o oposto íntimo há tanto proibido, a que Jung chamava de Animus/Anima. Como o próprio Jung alerta, ambos os procedimentos (com a sombra e com o Animus/Anima) são dotados de seus próprios perigos, mas contém em si a única possibilidade de reavermos A Pérola de Grande Preço, cujo valor foi declarado pelos sábios como incomparável a qualquer outra coisa no universo.

Wife of Satan por Kalmakoff


(1) Escolho deliberadamente a palavra "automatismo", pois, como insinuei oblíquamente no post anterior, quero apontar o fato de que programa Surrealista era diretamente Gnóstico. Não com muito espanto podemos constatar André Breton traçando no Segundo Manifesto do Surrealismo um paralelo direto entre os surrealistas e os magos da era passada.

(2) Similar visão é expressa por Aleister Crowley, como pode ser constatado no (primoroso) Liber Aleph.

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