sexta-feira, 8 de julho de 2016

O Futuro da Magia


Quando adentrei na Magia, inicialmente sob o viés da Magia do Caos, ergui a bandeira da  técnica enquanto possível "língua franca" não-sectária entre as diferentes escolas espirituais. Acreditava que uma simples dose de  pragmatismo poderia resolver o barulho e incompreensão da dispersão de vozes, correntes e caminhos que é o Sagrado. Bastaria jogar mais duro com a razão, mudando o foco da conversa rumo à aquilo que pode ser observado: técnicas e resultados. Foi esse ponto de vista que me levou ao movimento online do Pragmatic Dharma, um grupo de blogs, websites e foruns de meditadores interessados em abordar o caminho espiritual sem os excessos dogmáticos da participação religiosa. O budismo Theravada (e sua cria o movimento vipassana) serviu de ponto de partida, sendo Theravada a mais "seca" e técnica das correntes do budismo - que é arguívelmente uma das mais secas religiões - e com "seca" quero dizer avessa a prestar concessões ao imaginário e intuição mítica populares (buscando livrar-se dos entretenimentos e consolações da neurose coletiva). Com o trabalho da dupla britânica do Baptist's Head, confluíram o Pragmatic Dharma e a Magia do Caos - e a noção de iluminação, que por milênios compôs o caroço das tradições espirituais, foi reinserida pela dupla britânica  no horizonte memético da Magia do Caos.

A abordagem "científica" da magia tem como pioneiro o ocultista britânico Aleister Crowley, intitulado a Grande Besta (do Apocalipse), criador do "Iluminismo Científico" - uma abordagem cética da Magia. Em seu Liber O vel Manus et Sagittae, Crowley propõe: "Fazendo certos atos, certos resultados virão; estudantes são enfaticamente alertados contra atribuir realidade objetiva ou validade filosófica para qualquer um deles". É bastante por esse viés (e também sob influência das pirações do Austin Osman Spare) que em uma "atitude punk" alguns magistas britânicos decidem reescrever a Magia do zero durante a década de 80. Surgiu assim a Magia do Caos, que em espasmos de criatividade e saturação é declarada morta a cada década, continua a feder como um cadáver, mas miraculosamente volta à vida (mais como um apocalipse zumbi). Os sistemas tradicionais de magia foram jogados fora como quem descarta a geração anterior de Smartfones - "tralha filosófica" de gente velha que fala complicado - e a pragmaticidade dos "resultados" rápidos & irrefletidos tornou-se o único padrão possível.

É irônico contudo que, precisamente agora que instituí um regime de prática sistemático e efetivo em minha vida, meu foco tenha mudado. Teve um papel nisso toda uma década em deriva pelas comunidades brasileiras virtuais da Magia do Caos e de outras correntes próximas. O que pude constatar é que isso foi longe demais. E esse pragmatismo materialista se tornou justificativa pra um envolvimento superficial e preguiçoso com o que uma vez foi a Sublime Arte do Espírito. Os tradicionalistas gritam "degeneração", e não é à toa. Mas não há pra onde correr: o Kali Yuga está aí - com o colapso de nossa civilização - e até o mais encasquetado tradicionalista acaba tendo de afirmar a desconstrução (pra ser capaz arcar com a morte de um mundo).


Fomos todos pegos nessa estranha cilada da história, entre uma tradição que não acompanha um mundo em rápida mudança, e uma modernidade que a cada geração de produtos novos só faz escancarar o buraco que se abriu. Entre a religião e a ciência, há um intervalo: é aí onde a Vida ainda é capaz de criar e experimentar. Posicionar-se neste intervalo é uma tarefa Mercurial: mediar os opostos, um complexo jogo de traduções e traições (1). Esse processo transcorre longe do espetáculo da mídia e da opinião pública, que sempre chega por último, dependente como está do mínimo denominador comum. A atividade aqui tem três braços, tem de ser tripla, sob risco de fracassar e se deixar reduzir a um futuro sem passado ou a um passado sem futuro:

1-CONQUISTAR & SAQUEAR: resgatar as pérolas de Grande Valor da tradição (passadas de mão em mão com carinho por milênios) enquanto descartamos a tralha das eras (moralismo, racismo, machismo, homofobia, etc). Para isso é preciso entender as Tradições em seus próprios termos - é como re-aprender a falar a língua esquecida do seu avô (que, dotada de sua própria lógica funcional, conseguiu gerir um mundo por milênios - até ele acabar). Sem entender o que ficou pra trás, não temos como saber o que é importante de resgatar. Os setores progressistas acreditam que basta rir dos conservadores que a tempo irão se envergonhar de sua cafonice e deixar isso de lado. Infelizmente não é tão simples: enquanto o progresso se fizer atropelando as partes mais 'lentas' da alma humana (elas mesmas dotadas de imenso valor), sofreremos violentos coices de retorno (o que a esquerda chama de backlash).

2-ARQUEOLOGIA DO INCONSCIENTE: escavar debaixo da terra as potências do Cthuluceno, no subterrâneo psíquico comprimido pelo peso e opressão de uma era. Redescobrir o feminino recalcado, as tantas vozes silenciadas, integrar os monstros da pulsão agressiva & sexual mal-compreendida (e temida pelos adestradores de gente).  Os conservadores não percebem que foi a própria sombra da tradição que engendrou os excessos da modernidade, filha bastarda da tradição. Isso se deu da seguinte forma: a tradição é desde o início patriarcal, o que sempre ostentou com a maior pompa! (hoje certos conservadores angustiados preferem se fingir de bobos: "patriarcado, que isso gente, onde?") Dez mil anos enfatizando o pensamento e a objetividade reputadamente masculinas, relegando o mundo crepuscular da intuição e do sentimento ao subterrâneo. Nas trevas, os monstros proliferam: enquanto isso, a cabeça da modernidade, que vive nas alturas, destrói o planeta esquecendo a base onde pisam seus pés.

3-OVO DO MUNDO: enquanto o mundo pega fogo, não adianta tentar levar consigo toda essa imensa bagagem que se acumulou em dez mil anos: por isso é preciso triar o essencial e encapsulá-lo de forma econômica, elegante e concentrada, para que, quando a tempestade passar, possamos re-criar um mundo melhor do que o último. Aqui há espaço para um verdadeiro trabalho criativo, pois num solo movediço como o nosso, o esforço de adaptação tem de ser uma constante. E quando caímos refêns da dúvida, sob os canhões de desinformação do espetáculo, só é possível escapar com a seguinte pergunta: Quem tem o Ovo do Mundo?


(toda a arte gráfica da autoria de Larry Carlson, série Astronomica)

(1) Meu agradecimento ao colega astrólogo Thiago Dornelles,  quem me chamou atenção para esta ambiguidade mercurial entre a tradução e a traição  na qual nos enredamos em toda tarefa de mediação, em especial, na mediação entre a tradição e a realidade presente.

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