quinta-feira, 2 de março de 2017

Contra o ideal ascético

(arte: Hans Burgkmair)

Rezam algumas tradições que o curso de ação mais virtuoso é a renúncia ao mundo e à sociedade: o ideal ascético. Subir a montanha ou vagar no deserto, sacrificando a vida a um outro mundo no Céu ou na extinção do Ser no Nirvana: tudo menos esta bagunça aqui de fogo, lama, sangue e poeira.

É verdade, a mais nobre verdade, que a vida na Terra é desprovida de sentido intrínseco. Que as idéias de duração, permanência, fixidez, são fundamentalmente ilusórias, assim como o "eu" que faz o sujeito da Cultura. Com isso estou repetindo os ensinamentos chave de Buda:  Eu e Duração são efeitos de superfície, que não tem nada a ver com os fundamentos da vida ou da realidade. E a maioria absoluta das pessoas passa a sua vida inteira rastejando no superficial.

Similarmente, o que passa como "cultura" hoje - e talvez na maior parte da história civilizada - é de uma pequenez de sentido que chega a doer. Quero dizer, as discussões porcaria da tevê ("Malhação discute o problema das drogas"). Mais uma geração de celulares, dessa vez com megapixels extra. Miniaturas de capacete. Vibradores em forma de super-heróis. Outro retrô nostálgico de outra década perdida. Roupas na moda este verão. Caetano estaciona no Leblon. "Porque ele não se mata de uma vez / pula logo deste prédio?" (essa frase eu ouvi várias vezes ontem). Até coisas verdadeiramente pungentes e baseadas em experiência vivida, como por exemplo o dilacerante legado da escravidão e do patriarcado, acaba diluído em briguinhas virtuais que gastam muito tempo de todo mundo e adiantam muito pouco. Tudo isso em eletrônicos cuja fome de energia justifica chutar os Munduruku pra fora de sua terra sagrada. Em petróleo cavado à custa de vazamentos de óleo como o da BP. Cuja mineração acarreta desastres como o assassinato do Rio Doce pela Samarco/Vale/BHP. Cuja produção é feita em fábricas com trabalho semelhante à escravidão. Cujos componentes tóxicos serão empilhados na Africa sob a alcunha de "reciclagem".

Quer saber onde está o MAL? Não é preciso caçar longe, tampouco adotar um barroco código moral. Busque o que envenena o solo, o ar, a água: busque aquilo que é extraído, usado ou abandonado, sem consideração com os ciclos que mantém a terra habitável. Com os ciclos que regem o nosso próprio corpo e mente.

Enquanto eramos poucos, e as culturas ainda tinham algo de pé no chão, a pequenez de nossos propósitos era perdoável. Até charmosa. Embora a gente saiba também que é opressiva: o poder da moral e da família, em uma sociedade pequena, abafando o devir sempre que possível. As cidades também permitem um ventilar: as cidades inventam o indivíduo, que é o embrião improvável de algo ainda impensado.

(arte: Kevin Lucbert)

Frente a isso tudo, dá pra entender como aqueles de índole mais introspectiva - que acessaram, que seja brevemente, a força dos arquétipos a pulsar no fundo da gente - queiram rejeitar a bagunça, e se fechar vivendo por conta do brilho interior. Ou, o que dá no mesmo, imergir na presença física da natureza intocada, que reitera concretamente os modos fundamentais de nosso próprio corpo e mente.

Talvez este isolamento constituísse uma verdadeira alternativa - num passado onde as consequências da presença humana na Terra eram meramente locais, e havia um fora abundante para o qual correr. Pra onde corremos hoje, se a lama da Samarco não reconhece limite algum? O problema não é, claro, que alguns indivíduos encontrem nas montanhas aquilo que pode saciar suas almas; o problema é que o espírito, os arquétipos, não concernem apenas ao indivíduo e soluções individuais; são, ao contrário, a fonte coletiva de onde emergem os valores capazes de dar um sentido coeso à existência social. São uma resposta coletiva a um problema coletivo, e o indivíduo, se tem espaço nessa equação, é mais que tudo como mediador.

As tradições ascéticas criaram uma confusão - fazendo da crítica social um contra-ideal, um ideal meramente negativo. Estas críticas - me refiro, por exemplo, aos ensinamentos subversivos de Buda e Cristo - a principio oferecem um ganho de potência, ao afrouxar os antigos grilhões (como casta, raça, gênero, tribo), ideais enrijecidos que convidavam já na antiguidade algum tipo de negação.  Por isso a crítica a princípio foi libertadora. Mas caso sejamos incapazes de afirmar coletivamente outros valores, a crítica se torna um contra-ideal, e começa a dissolver a própria capacidade de fazer convergir os desejos, sonhos e esforços.

O mundo humano, desprovido de seus pilares, decai então ao niilismo puro e simples. Quando os melhores "vão pras montanhas", real ou metaforicamente, os piores governam a sociedade. É nessa terra desolada onde brotam como praga as flores do niilismo: o culto à indiferença, o "foda-se" como estratégia desesperada de manter algum senso de controle, a isenção de responsabilidade envolvida nas trocas comerciais, os "não-valores" por trás da democracia (tantas vezes disfarçados de "tolerância") e que culminam na eleição de populistas como Donald Trump; ou, conversamente,  a ascensão da "direita alternativa" que aproveita o vácuo deixado pelas referências tradicionais e oferece um romântico "tradicionalismo": a tentação de negar a história, negar as potências concretas do presente e fetichizar um passado que nem sabemos bem como foi.

Se levarmos os insights dos místicos a sério, concluiremos que toda experiência é potencial portadora de uma mesma verdade, ou seja, a cidade e o campo, a solidão e a multidão, o rústico e o tecnológico, o feio e o bonito, fraco e forte - são de uma mesma natureza fundamental, compartilham a mesma substância. É apenas no mundo humano - uma sub-seção bastante estreita do universo - onde essas diferenças adquirem uma proporção vital. A radicalidade e dimensão cósmica do insight místico é por isso capaz de por abaixo nossos medíocres castelinhos de cartas. Mas, na mesma medida, é capaz de servir de base para a criação de novos valores: ao possibilitar a contextualização, os valores que se dissociaram de uma imagem do todo são destroçados pela inversão de perspectiva; já outros valores renascem renovados pelo contato com o sentido maior de onde se inserem.

Por isso, além da função negativa/crítica do êxtase místico,  há uma tarefa positiva: fazer a ponte entre os fundamentos do Ser com as demandas contingentes de um dado momento e local.

(arte: Hans Burgkmair)

E vivemos num momento e local bem especial; dotado de suas próprias urgências. Há um ecocídio em curso e ele não vai parar conforme nos isolamos em protesto. Mais ainda, a gente não vai "descobrir nossa essência" se fechando em um claustro. Porque não há uma essência pré-pronta à ser descoberta; existe apenas o processo da vida, singular de cada um, a se desdobrar. E a vida se desdobra no mundo, se inventa no encontro (e as vezes confronto) com o mundo. Ela surgiu da lama, poeira, sangue e fogo. E para aí retornará.

É muito difícil, sim, encontrar um modo de tornar esse mundo venenoso num degrau no processo da sanidade. Há portanto um tempo de se recolher, de meditar, de aprender com o ritmo silencioso da vida - porque sem isso - a dispersão é inevitável. Mas há também o tempo de investir na cultura, como criadores, sanadores ou conquistadores. Parafraseando o Swami Anand Nisarg, "Não busque pela perfeição. Busque a conexão". A perfeição é só mais um ideal moral. A conexão é transformadora.

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