quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A Beleza Será Convulsiva, ou Não Será

Loïs Mailou Jones, design têxtil para Cretonne, 1928

No recente pânico moral que se levantou contra alguns ramos da Arte, lado à lado com a discussão sobre nudez e pedofilia, frequentemente emergiram também brados de "isso não é arte", contrastando as obras de estilística chocante (e também as artes demasiado conceituais) com as obras de artistas neo-clássicos ou até mesmo modernistas e surrealistas (!). "Você colocaria este quadro na parede de sua casa?", bradaram indignados os novos críticos.

Já argumentei aqui no blog que é um terrível empobrecimento pautar a Arte como uma sub-seção da Decoração. Realmente, nas paredes de nossas casas, a maioria de nós prefere imagens que transmitam conforto, porque a função principal de uma casa é refúgio e descanso. Não há nada de errado nisso, mas a vida não se restringe ao harmônico, a arte não apenas um refúgio mas também uma luta - e uma dose planejada de desarmonia pode ser ela mesma salutar, como reza o velho adágio sobre venenos na dose certa.

Desafiei alguns dos novos críticos à tarefa nada simples de me fornecer uma definição do que é Arte. Nenhum ousou se colocar à altura do desafio. Crítica de arte, filosofia da arte, é mais do que mera opinião e certamente não deve se tornar uma disputa eleitoral onde a maioria tem a palavra final. Afinal - uma coisa é elencar as obras que você gosta contra as que não gosta, mas a tarefa do filósofo envolve desenterrar às duras penas quais os conceitos que engolimos junto aos valores de nossa cultura, a infra-estrutura de nossos gostos e desgostos, e triar aí o vital do que é apenas secundário.

Afinal, Arte tem de ser bonita? O que é o Belo? Os antigos tentaram definir o Belo através de uma definição formal, até mesmo matemática, chegando assim a regras que... Longe de suas pretensões de universalidade, traem apenas os valores e gostos de uma época. Mas a Beleza, entendida como supremo objetivo da Arte, poderia estar restrita ao gosto bairrista de uma época e lugar? Não haveria, como já argumentei, um papel para o feio, desarmônico, e grotesco nas artes? - afinal aceitamos sem problema que Goya e Bosch são artistas consagrados.

Muitos então jogam a toalha, e dizem que não há essência do Belo e da Arte. Que Arte é o que chamamos de Arte, e que esse sentido é simplesmente disputado socialmente. Então não haveria nada que nos permita diferenciar entre o pânico moral e a  filosofia e crítica de arte como vem sendo praticada na academia; nenhuma diferença intrínseca entre um poeta adolescente imaturo e um gigante da poesia. Tampouco haveria diferença entre obras "boas" e "ruins", sendo tudo explicado por um acaso social cego e acidental.  Essa, ao meu ver, é a pior saída - verdadeiramente niilista, nivelando a problemática por baixo. Frente à essa recusa covarde de valorar, de diferenciar, até mesmo os moralistas histéricos saem na frente, pois não há nada mais avesso à vida que a indiferença. Infelizmente, aqueles que se levantam em defesa da "liberdade" das Artes, por mais bem intencionados que sejam, não penetraram o suficiente na questão para distinguir deste ultra-relativismo a sua linha de fuga. Não é o suficiente.

Ao contrário dos filósofos antigos, não acredito que a Arte e a Beleza existam enquanto virtudes imateriais e formulaicas. Mas ao contrário dos niilistas modernos, e dos ultra-relativistas, acredito que a Beleza é uma força viva, causadora de diferença, e que nem toda pretensa arte atinge de fato uma composição que possamos chamar de Bela.


A DIFERENÇA ESTÁ NO CORPO

Anthony Perkins na adaptação de Orson Welles do "Julgamento" de Kafka (1962)

O corpo de um moralista em pânico é diferente do corpo atravessado pela força criativa da arte. O pânico moral é um tipo de rigidez automática e defensiva do corpo, um comportamento reativo. Uma sensação de desgosto surge no corpo do moralista, e ele se identifica com a reação - perdendo, contudo, da consciência, a possibilidade de acessar o local de onde origina-se a reação: os hábitos e forças ainda incompreendidas do inconsciente.

O corpo em estado de criação, e o corpo tocado pela arte, é um corpo ondular, transbordante. Parafraseando Zé Celso, a tarefa de um artista é acessar o inconsciente coletivo de sua época. A técnica e a forma é apenas um atravessamento para que uma força coletiva, ainda subliminar, possa manifestar-se (e portanto diferenciar-se), dando parto à símbolos poderosos que agem como marcos sobre a psiquê. Podemos dizer que o artista atende à uma necessidade imperiosa de encontrar um novo caminho pela qual a libido coletiva possa fluir.

Como Wilhelm Reich já bem demonstrou, a moral é um sistema de controle que coloca os corpos em guarda contra sua própria sexualidade e agressividade. A energia assim reprimida busca formas alternativas de escapar, assumindo um caráter perverso. Reich denominava o deboche e a prostituição que se alastrava em sua época como "cultura pornográfica". A pornografia, neste sentido, é a outra face da moeda da moral. Não é portanto de estranhar que o bible belt  norte-americano (estados de maioria cristã) tenha maior índice de consumo de material pornográfico.

Já o estado de criatividade pode ser descrito, em termos Junguianos, como uma ponte, um contágio, entre o consciente e o inconsciente - entre as funções psicológicas mais diferenciadas (que estão sob controle do ego) com as menos diferenciadas (funções ainda inconscientes).

Jung descreve o ser humano como dotado de 4 funções psíquicas, agrupadas em pares de opostos: o pensamento e o sentimento, de um lado, e a intuição e a sensação, de outro. Durante nosso crescimento nos identificamos com uma dessas funções, desenvolvendo-a em detrimento das outras. Em parte isso acontece pois temos propensões naturais, mas também há incentivos e imposições que são colocadas pelo meio.

Desta forma deixamos relegada a função oposta do par - a função inferior - à um desenvolvimento precário e inconsciente, fora de nosso controle. Ela surge como um ponto frágil, vulnerável e mal compreendido de nossas personalidades. Quanto menos encontro há entre a consciência e o inconsciente, maior a chance de que essa função inferior venha à se revoltar por ter sido deixada à míngua,  sabotando os planos que elaboramos conscientemente.

Apesar da função inferior possuir um caráter bárbaro, anti-social e infantil, ela carrega também um charme pristino similar ao das crianças: sua inocência lhe confere uma graça natural e espontânea, em contraste à artificialidade da função superior.  Por isso, como frisa a junguiana Marie-Louise von Franz (1), o caminho para integrar a função inferior não está em elevá-la a um controle similar ao da superior, mas numa aceitação plena de sua própria imperfeição e vulnerabilidade.

O artista em estado de criação cria um contato entre sua função superior e a inferior. Neste momento, seu ser age de maneira integrada. Na divisa do controle e o descontrole, surge uma zona mágica e instável. É preciso tanto treinamento técnico quanto maturidade psíquica para sustentar esse estado, habitar o limite entre a ordem e o caos. A integração das energias psíquicas do artista é por si só curativa - por isso, toda verdadeira Arte tem a função de cura. É também aqui onde é possível uma Beleza magnética, onde a forma vem a ser inflamada pela graciosidade de um corpo vivo & espontâneo. Breton: "A beleza será convulsiva, ou não será" (2).

Quem encontra uma obra que surge de tal estado pode ou não ser afetado. Porém, quão mais intenso o êxtase do artista, quão mais conexão ele propicia para a força do inconsciente coletivo, maior as chances dele imprimir uma força de cura sobre os que testemunham sua obra. E esta cura pode assumir diversas formas de expressão: pode ser hedionda, pode ser harmônica, pode ser riso, raiva e choro: frequentemente será um pouco de tudo. Mas nem todos serão atravessados. A Arte - assim como a felicidade - tem um preço de entrada, e não é para todos.




(1) HILLMAN, James  e VON FRANZ, Marie-Louise. A Tipologia de Jung. Cultrix, 2013.

(2) BRETON, André. Nadja. Cosac Naify, 2007.

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