segunda-feira, 17 de julho de 2017

O GRANDE APRISIONADOR (Parte II)


Peter Zokosky, "Attraction" (2008)

UM CLARÃO EM MEIO À ESCURIDÃO

"Como caíste do céu, ó Lucifer, filho da alva!"
Isaías 14:12

Conforme a Luz descende, o Inferno, até então escondido, se revela.

E o Inferno é a Matéria, o Caos, a receptividade original, a Deusa antes de parir o universo.

E a Luz é uma contaminação. A matéria está sendo contaminada pela Luz. Ela reage à esta estranha presença, criando o fantasma do Mal.

O Diabo em sua queda é o bode expiatório à quem foi confiada a maior e mais ingrata de todas as tarefas: levar a tocha pra dentro da caverna. É por culpa dele que enxergamos. E como odiamos enxergar!


Não é à toa que o depositário dessa terrível missão foi o anjo mais orgulhoso. Posso acreditar, sim, que semelhante "castigo" só pode ter sido invocado pela hubris.

O Diabo foi posto a servir, contra sua vontade. Como poderia ele escolher cair, cair, e cair?

Aonde ele passa, não é compreendido. Só quando sei foi é que sua missão se torna evidente.

Abençoada seja esta passagem, pra que seja breve e sutil.



"Ilumina o mundo,
Ilumina o mar,
Ilumina a terra,
Cidade de Satanás."


O GUARDA

Hades é o demiurgo do mundo da matéria. O capataz colocado pelo Deus remoto pra gerir esse hospício.

Hades também não aceitou reinar sobre o submundo de bom grado. Talvez tenha ficado até meio louco no processo. Sem ser meio louco, a tarefa seria impossível.

Mas sem a chama na escuridão, o que seria do mundo?

O próprio Cristo foi chamado de Lucifer.
Não é ele também o guardador de rebanhos?
Quem é ele senão a chama que desce à Terra?
E não teria ficado também meio louco também, no processo? - "Pai, porque me abandonaste?"

Quando Lucifer, em seu suplício, experimenta a privação de sua Vontade - se abre para nós a chance de participarmos também da Vontade.


Francisco Goya, O Sabá das Feiticeiras (1978)

A VONTADE

A Criatura - o mundo criado - é uma ponte entre o Macrocosmo ao Microcosmo - dizem os "7 Sermões aos Mortos".

E a natureza da Criatura é a Diferença.

Conforme a Luz descende, ela permite a Diferenciação. Ela permite que a Matéria emerja das brumas da indistinção e se experiencie como uma multiplicidade.

A Luz permite uma referência para que a Criatura possa participar de uma estrutura invisível, porém superior a ela em todos os sentidos. Permite que a Criatura descubra a própria Singularidade entre todas as coisas manifestas e imanifestas.

Essa Singularidade é ela mesma Vontade, a fonte de toda Magia. E Magia é Yoga, que significa Amarração ou União.

É através da Vontade que nos amarramos ao Diabo, e é também pela Vontade que nos libertamos.

Religião (dizem alguns) reverte em Re-Ligare. A Matéria, cuja alegria é o Caos, pode perfeitamente se espatifar em milhões de fragmentos. Mas a Criatura, vivendo sob a Vontade pode ligar-se à Alma do Mundo e, nessa participação, conquistar a consistência que lhe é própria - conquistar uma alma própria.

O preço que pagamos de entrada é a idéia de livre-arbítrio. (Estamos, afinal, falando do Grande Aprisionador). O que a Luz pode revelar, à nível material, é o próprio Destino. Pagamos com a idéia de livre-arbítrio para ter a idéia do Destino. E o Destino, apesar de implacável, é também flexível. O Livre-arbítrio, ao contrário do que parece, é rígido: ele pressupõe uma unidade centralizada intrínseca ao observador. O Destino entende a vida como uma vasta trama de Co-Criação. Não estamos no centro dessa trama, e sim em suas margens. Com sorte, fluímos ao longo do destino, como surfistas na maré do tempo.

E a maré tem vida própria. Isso coloca limites, limites imanentes, limites móveis. Satan foi chamado de Lucifer, e Satan é ele mesmo Set ou Saturno, senhor dos limites e de toda prisão. Por um estranho circuito encontramos a luminária dos céus, Lucifer, igualado ao senhor de tudo que é escuro e opaco. Pois Saturno é a contraparte do Sol, sem o qual o Sol não pode existir; o vazio escuro que afasta as estrelas umas das outras e cria a distinção entre elas.

É quase como se Saturno tivesse se feito escuro para que pudesse haver luz...





A ENCRUZILHADA

O Senhor dos Limites nos situa como um limite em nós mesmos, uma ENCRUZILHADA: entre o Céu e o Inferno, entre a vida na terra e a Vida Eterna, entre o dentro e o fora, entre o microcosmo e o macrocosmo. E como coloca Frisvold, a Encruzilhada é o local de poder por excelência. O nexo que permite à Luz das Estrelas de circular dentro das cavernas.

O encontro com o Diabo, senhor da encruzilhada, e sua Luz revela que há apenas duas escolhas: Diferenciar - que é viver ativamente - e Negar - que é viver em reação (o que os budistas chamam de sankhara).

Quando afirmamos, Diferenciamos, o Diabo passa por nós tendo doado toda sua Luz.

Quando negamos a Diferença, descemos em queda junto ao Diabo.

Só acompanhamos o Diabo em sua queda porque não acabamos ainda de absorver toda sua Luz.

*

"O Diabo" no Tarot de Thoth (Crowley-Harris)


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